quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

A SEMENTE DE RACHEL Leal Kostav

A SEMENTE DE RACHEL
Leal Kostav

                                                  Não sei dizer, se me perguntassem hoje, quantos livros tenho mal dispostos em onze estantes distribuídas por toda a casa. A bem da verdade, ainda não os li todos e não sei quando os lerei e se os lerei. Todos, na real, não vai ser possível, ainda mais agora com essa mania de ler as obras sublinhando trechos e destacando frases.  Não é de  agora essa mania, a de ler  com lápis à mão.  Vou sublinhando uma palavra aqui, uma frase ali, como se, ao final, livro aberto ,eu pudesse dizer, como um perito legista: “dissequei o corpo e aqui restaram os órgãos vitais que o animaram por tanto tempo” ou, como diria talvez um poeta: “sobre esses  riscos movimenta-se a alma desta obra.” Mas o que me levou a gostar de livros, a fazer da leitura momentos de prazer e reflexão e, ao mesmo tempo, um encontro com a liberdade? Para um menino acostumado ao cheiro forte da fumaça das coivaras no roçado, ao preparo da terra para o plantio do feijão, do arroz e do milho, enquanto esperava o tempo da colheita e que, nesse intervalo, a maior caneta que utilizou foi o cabo grosso e pesado da enxada, gostar de livros seria tão impossível como encontrar luz no drama dos humildes. Naquelas condições de vida, só mesmo uma história nascida da ficção faria alguém acreditar que o menino da roça, quase analfabeto, encontraria, na leitura, o seu maior tempero da vida.
                                             Em  histórias de amor há sempre (ou quase sempre) a presença  de uma mulher. E, nesta, a da minha paixão pela leitura, ela, a mulher ­– e não é uma  qualquer – não poderia faltar. E lá na roça, entre Porto Grande e a Fazenda Campo Verde, depois da vila Porto Platon, no então Território Federal do Amapá, foi plantada uma semente diferente das sementes que eu conhecia: a semente que Rachel de Queiroz ( 17 de novembro de 1910 – 4 de novembro de 2003) plantou em mim pelas mãos de meu pai, através da Última Página da revista O Cruzeiro. Eu, então, teria lá meus 10, 11 anos.
                                            Ainda lembro do banco em que eu saboreava com os olhos cada frase de  Rachel de Queiroz – um tronco de árvore de acapu, madeira de lei resistente ao tempo. Sentado no  banco   de madeira bruta, debaixo de uma mangueira, no meio do imenso quintal,  eu lia O Cruzeiro, a revista que chegava ao meu pai não sei por mãos de quem. Eram revistas antigas, às vezes antigas de meses.  Certeiro, ia logo na Última Página, onde a autora de O Quinze, de João Miguel, de As Três Marias e de Memorial de Maria Moura, a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, me conduzia a um mundo de encanto às vezes , de dureza outras e que só hoje eu sei o que era: prazer estético. Começava, ali, uma transformação, a do menino leitor, seduzido pela cronista para a leitura de livros. Bem-aventurado sou por um dia ter cruzado o meu caminho essa mulher, bendita Rachel de Queiroz.
                                        Pois bem, naquele fim de mundo, grotão perdido   na periferia do Brasil, o verbo de Rachel me encantou. O estilo leve de seus textos, as histórias muito bem contadas e estruturadas às vezes como contos, formavam as crônicas que eu lia , sempre nos finais de tarde, após o trabalho na roça, na paz e no silêncio da mata. Hoje, estou aqui, deixando o tempo rolar nestas mal traçadas, para lembrar que, sempre que posso, volto às crônicas de Rachel, “no silêncio ou na insônia da noite.”

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