sábado, 2 de abril de 2016

Cana Amarga, Paulo Mendes Campos



Cana Amarga,   
Paulo Mendes Campos


Um dia, o engenheiro Salgado estava aqui no Rio, por acaso diante de um colégio na hora da saída, quando uma irmã de caridade, fungando desconfiança, perguntou-lhe:
— O senhor está esperando criança?
— Não, senhora, sou gordo assim mesmo; distúrbio glandular, dizem os médicos.
Mas o diálogo insustentável de sua vida nada teve a ver com o seu corpo enorme. Foi em uma estrada de rodagem no interior de Pernambuco. O caminho se adentrava em um canavial, e Salgado, menino de engenho no Ceará, sentiu vontade de chupar cana, parou o carro, afastou os arames da cerca. Cortar cana, enramá-la num feixe é coisa que todo bom nordestino faz em um átimo. Com o molho às costas, preparava-se de novo para sair, quando ouviu uma voz cantada à maneira da terra e de frieza metálica:
— Moço.
Entre os pés de uma touceira, espingarda na mão, estava um caboclo de olhar tão impessoal e gelado quanto a voz que o chamara.

— Às suas ordens, conterrâneo.
— Que está fazendo aqui, moço?
— Ia passando de automóvel...
— Passando por onde, moço?
— Aí pela estrada.
— E o que está fazendo então aqui dentro, moço?
— O senhor queira me desculpar...
— Desculpar o que, moço?
— Eu ter entrado e apanhado um pouco de cana.
— A cana era sua, moço?
— Mas o senhor vai compreender...
— Compreender o que, moço?
— Estou indo pra casa de um irmão e meus sobrinhos gostam muito de cana.
— Cana dos outros, moço?
— Um pouquinho de cana de nada...
— Como é que vai entrando em terra dos outros pra roubar cana, moço?
— Bem, eu não queria roubar.
— Queria roubar, sim, moço.
— Ia procurar alguém e pagar.
— Mentira, moço.
— Pois então eu pago agora.
— Pagar o que, moço?
— A cana. Quanto é?
— Quanto é o que, moço?
— A cana.
— Quem está vendendo cana, moço?
— Ora, meu irmão, escute uma coisa: essa conversa está ficando aborrecida, já não sou mais criança, vou dar o fora. Pode ficar com a cana.
— Espere aí, moço.
— Diga logo.
— Leve a cana, moço.
— Não quero cana.
— Leve a cana, moço.
— Só pagando.
— Não estou vendendo; leve a cana, moço.
— Então, muito obrigado, desculpe o mau jeito.
— Não há de que, moço.

Texto extraído do livro "O cego de Ipanema", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 147.

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