sexta-feira, 22 de maio de 2015

Entre a cruz e o caldeirão, Humberto Werneck



Entre a cruz e o caldeirão
Humberto Werneck




O Estado de São Paulo
22 Março 2015

Dois pavores assombraram minha meninice, e mais ainda a puberdade, com sua enxurrada de hormônios: a perspectiva de arder para todo o sempre - o que me parecia um bocado de tempo - no fogo do Inferno, pecador que era; na outra ponta, a possibilidade de que subitamente me viesse o tal "chamado de Deus". Acredite: a primeira hipótese, em que estaria condenado às borbulhas no caldeirão do Diabo, qual paio e linguiça em feijoada, me parecia menos atemorizadora que a segunda. Tudo, rogava eu às potestades do Bem e do Mal, menos receber uma convocação divina e virar beato!

Não queria ser um daqueles santinhos cuja vida irritantemente virtuosa me chegava em relatos escritos e orais. Aquele menino francês, por exemplo - o Guy de Fontgalland? -, que estava um dia em pleno futebol na escola quando um padre interrompeu a pelada: o que vocês fariam se soubessem que iam morrer daqui a pouco? Do goleiro ao ponta-esquerda, todos disseram que correriam ao confessionário para uma enxaguada na alma encardida. Menos aquele lá: impávido, declarou que continuaria a bater sua bolinha, com isso querendo dizer que trazia a alma permanentemente nos trinques, lavada, passada e engomada para o encontro a qualquer hora com o Senhor.

Em último caso, eu até topava submeter-me à lavanderia espiritual, mesmo ao preço de abrir mão das atividades exatamente manuais a que então me entregava com fervor pecaminoso. O problema é que ser santinho implicava morrer cedo: nunca se viu santinho adulto. Santidade infantil matava? Parecia que sim. O Guy de Fontgalland, por exemplo, tinha apenas 13 anos quando a longa mão de Deus o recolheu. Idem o Domingo Savio, a Maria Goretti, o Antoninho Marmo, a Odetinha, tantos outros, além do Francisco e da Jacinta, pastorzinhos de Fátima a quem Nossa Senhora apareceu seguidas vezes na Cova da Iria.

Se ao menos eu pudesse ser como a Lúcia, companheira do Francisco e da Jacinta, que morreu quase centenária... Melhor: São Francisco de Assis, que, na juventude, antes de banhar-se na Fé, ainda sem passarinhada nos ombros, chafurdou nos prazeres do mundo. Ou o poeta Murilo Mendes, que pintou e bordou até converter-se, às portas dos 33 anos, em circunstância aliás impressionante: à beira do caixão do amigo Ismael Nery. Mesmo São Pedro, tão pecador quanto pescador, aprontou as dele, chegando a negar três vezes seu camarada Jesus antes que o galo cantasse. Na minha pequenez liliputiana, eu mirava esses gigantes e me programava: quando me fartar do corpo, vou para a alma!

Muitos, porém, são chamados, e bem poucos escolhidos. Duro e estreito é o caminho que leva ao Reino do Céu, aprendi também, nas páginas de um caderno que minha mãe encheu de desenhos, toscos mas expressivos, destinados a preparar os filhos para a Primeira Comunhão. Quisera eu ter outra vez nas mãos esse caderno que não catequizou apenas os 10 filhos da dona Wanda, mas também sobrinhos, vizinhos e filhos de amigas. A lembrança dele me assombraria vida afora, em especial a página em que, tendo provado da maçã, Adão e Eva veem quebrar-se a escada que os ligava ao bem-bom do Paraíso. A imagem da escada fraturada seria razão suficiente para alguém correr à terapia de ambulância e com a sirene ligada. Terapia de grupo: você e um grupo de terapeutas.

Não tenho o caderno, mas contemplo uma foto em que estou de terninho branco no dia da Primeira Comunhão. Usava-se, nessas ocasiões, ir posar num estúdio fotográfico, de joelhos ante um Cristo de papelão que estendia a hóstia inaugural, mas desse mico fui poupado: é num espaço aberto que estou. Pela expressão, imagino que alguém me mandou sorrir para a máquina de tirar retrato, como então se dizia, provavelmente esta câmera-caixote Mithra que tenho aqui ao lado, a cujo piscante olho de metal devo praticamente todos os registros de minha infância. Tenho 5 anos recém-feitos - e, tantas décadas depois, segue sendo um mistério o fato de ter sido apresentado à Eucaristia nessa idade, e não a partir dos 7, como todo mundo. Não tenho o aspecto de quem estivesse para morrer, o que justificaria a antecipação do sacramento. Mas quem sabe meus pais, contra várias evidências, vislumbraram em mim um caso de santidade infantil? Gostaria de ter dado a eles essa alegria. O problema é que santo de casa não faz milagre.

http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,entre-a-cruz-e-o-caldeirao-imp-,1655522

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