sábado, 3 de maio de 2014

CARLOS LACERDA, ELIAS RIBEIRO PINTO



CARLOS LACERDA
ELIAS RIBEIRO PINTO


DIÁRIO DO PARÁ, 29/4/2014

A deputada Ivete Vargas, sobrinha de Getúlio, aparteou-o na Câmara Federal com a frase: “V. Exa. é um purgante”. Lacerda, rápido: “E V. Exa. é o efeito”.
1 Certamente desconhecido pelas novas gerações (que afinal conhecem o quê?), Carlos Lacerda (1914-1977) retorna ao noticiário aquecido pelo centenário de seu nascimento, que ocorre amanhã.
2 O suicídio de Getúlio Vargas lancetou eternamente a biografia de Lacerda. Se o político, não raro sinistro e sombrio, habitava a chama de seu discurso, a persona do intelectual (que criou a editora Nova Fronteira) vem sendo ressaltada nos comentários mais recentes, como se pode comprovar nas cartas inéditas agora publicadas.
3 Opaco ele nunca foi. Poucos ambicionaram tanto a cadeira de presidente da República quanto o ex-governador da Guanabara, “O Corvo do Lavradio”, rua onde ficava seu jornal, a Tribuna da Imprensa.
4 Esta obsessão pelo cargo o levou a ser, psicanaliticamente até, querem alguns, um demolidor de presidentes. Sua luta contra Vargas era contra o “pai”. Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Jango, todos lhe conheceram a fúria verbal.
4 O moto-contínuo da polêmica ainda hoje lhe anima o espectro. Ulysses Guimarães certa vez disse que Lacerda, seu adversário, tinha sido um dos maiores parlamentares do país, mas, pessoalmente, não gostava dele, por bater duro demais. “O Carlos ia muito fundo, nocauteava os adversários com seu discurso. O efeito do nocaute intelectual é idêntico ao do nocaute físico: a vítima empalidece, chega a cair sentada. Lacerda era excessivo, era um massacre.”
5 Uma vez, por exemplo, a deputada Ivete Vargas, sobrinha de Getúlio, aparteou-o na Câmara Federal com a frase: “V. Exa. é um purgante”. Lacerda, rápido: “E V. Exa. é o efeito”. A mesma Ivete, em outra ocasião, ouvindo-o criticar pesadamente Getúlio, entrou no plenário da Câmara aos gritos de f.d.p. Lacerda, sem mudar o tom da voz, devolveu-lhe: “V. Exa. é muito jovem, não tem idade para ser minha mãe”. A um deputado que o acusou de ladrão da honra alheia, replicou: “Então V. Exa. não tem com o que se preocupar”.
6 Esse mesmo homem, um homem de letras, como já se disse, intelectual, tradutor de Shakespeare e Romain Rolland, deixou-nos um livro como A Casa do Meu Avô, de uma irreverência lírica singular, a começar pela extensa dedicatória a Maurício, o irmão morto, da qual retiro este trecho inicial: “Que se livrou da melancolia pela bondade irônica; e da amargura pela tolerância generosa; da solidão, pela capacidade singular que assinalou sua vida, aquela marca que imprimiu na vida das pessoas a que se dedicou com infatigável vigilância crítica mas incessante vontade de amar e compreender”.
7 Lacerda viu no irmão o que não foi capaz de imprimir à própria vida, por isso não pôde se livrar da melancolia, da amargura, da solidão dos últimos dias. Sempre me impressionou uma descrição de Otto Lara Resende de um Lacerda já cassado pelo governo militar pós-64, logo ele, ideólogo e pregador de um evangelho de que acabou vítima.
8 Conta Otto que, certa vez, em 1968, quando o táxi em que vinha para casa teve o pneu furado, correu para abrigar-se na porta de um edifício no Flamengo. Chovia. Otto deu-se conta de que era o prédio em que morava Lacerda. Resolveu subir. Naquele exato momento, o regime anunciava o AI-5. Encontrou o dono do apartamento só, mergulhado na cadeira de balanço. “Em hora tão grave, tão decisiva, impressionava-me sua solidão; eu olhava aflito o telefone; ninguém telefonava”.
9 Voltarei ao assunto. Por ora, recomendo, a quem não conhece, o livro Depoimento, resultado de uma série de entrevistas concedidas por Lacerda a repórteres do paulistano Jornal da Tarde. Em vez de escrever, como alguns de seus pares, uma autobiografia, em geral autocondescendente, Lacerda submeteu-se ao crivo dos jornalistas. Pode ser um depoimento parcial, passional, mas por isso ecoa-lhe o verbo exuberante. Sua voz anima o ambiente, principalmente hoje, em meio ao paupérrimo debate que nos cerca.

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